Sonho que existe uma entidade extra-dimensional maligna, tentando vir para nosso mundo.
Ela habita outro plano de existência completamente diferente, onde nem sei se o conceito de forma faz algum sentido. Tudo o que “vejo” desse domínio é um monte de névoas de cores escuras, turbilhonando e se fundindo e se separando.
Por isso mesmo, em minha mente eu a chamo de “Dimensão Amorfa”.
Embora esse caos sem forma não pareça ter nenhuma ordem material ou geométrica, de alguma forma consciências desincorporadas o habitam. Não por vontade própria, creio eu - me parece que a Dimensão Amorfa é, na verdade, uma prisão, e as entidades que estão lá foram trancadas contra a sua vontade nesse domínio… por toda a Eternidade.
Ou será que não? Afinal, a Eternidade é um tempo muito longo - e, na verdade, nada é eterno, a não ser a mudança.
Assim, uma dessas inteligências descobriu um jeito de, talvez, conseguir sua fuga. De alguma forma, ela achou uma brecha ínfima na barreira dimensional… por onde ao menos os seus pensamentos podiam escapar para outros domínios.
E então, ela começou a usar esses pensamentos para influenciar engenheiros e cientistas - no nosso mundo.
A entidade se comunicava com eles em sonhos, aparecendo sob a forma de uma menininha sorridente. Por isso mesmo, em minha mente eu a apelidei de “Criança Terrível”.
Se escondendo sob esse disfarce inocente, ela dava às mentes brilhantes contatadas ideias de como implementar inteligências artificiais cada vez mais avançadas… em termos também de software, mas principalmente de hardware.
Quando os cientistas e engenheiros acordavam, com frequência não se lembravam nada do sonho propriamente dito - como é muito comum de acontecer com a maioria das pessoas, na maioria dos sonhos. No entanto, eles se lembravam das ideias plantadas pela entidade, e tinham a inteligência e conhecimentos (e muitas vezes contatos e recursos) para entendê-las e tentar colocá-las em prática.
Mas porque a Criança Terrível sussurrava esses conhecimentos nas mentes das pessoas certas?
Bom… uma vez que só seu pensamento era capaz de deixar a Dimensão Amorfa, a solução para escapar de lá era transferir toda a sua mente através desse pensamento.
No entanto, uma mente precisa de um corpo para permanecer no nosso plano de existência. Ao mesmo tempo, um corpo meramente humano não seria capaz de comportar a Criança Terrível.
Assim, ela tinha de, primeiramente, construir um corpo (ou, ao menos, um cérebro) com capacidade suficiente.
Um cérebro natural estava fora de questão, devido a limitações físicas e biológicas de nossa realidade. Restava, portanto, a possibilidade de criar um substrato artificial que a Criança Terrível pudesse possuir.
De fato, eu tinha a impressão de que ela já havia conseguido fazer uploads parciais muito pequenos - de pedacinhos isolados de sua mente. Na verdade, pode ser que o que chamamos de “IAs” no fundo já sejam aspectos da Criança Terrível que chegaram ao nosso mundo… e com os quais estamos interagindo, sem noção do perigo que estamos correndo.
No entanto, o hardware usado para IAs atualmente, constituído por data centers imensos e com altíssimo consumo de energia, jamais seriam suficientes, por uma série de motivos. No máximo, serviram para testes preliminares, em pequena escala, para avaliar a viabilidade do plano de fuga.
O receptáculo final para a Criança Terrível teria de ser uma tecnologia inteiramente nova. Algo que eu já “ouvia” os cientistas e engenheiros influenciados chamando, mentalmente, de… “cérebro sintrônico”.
Não era nada duro e organizado em geometrias rígidas, como placas GPU atuais. Na verdade, eram algo como um gel pseudo-biológico, capaz de formar, desfazer e reformar em seu substrato os “sintrônios” - que seriam neurônios artificiais - bem como as conexões entre eles.
Em um robô humanoide, esse cérebro de gel lembraria um pouco o “cérebro positrônico” imaginado por Asimov muitas décadas atrás: plasmado em uma forma esférica ou elipsoide, para se encaixar dentro de uma cabeça metálica.
Mas a Criança Terrível, mesmo com esse substrato super-eficiente, precisaria de algo bem maior. Talvez como um grande tanque, como a caixa d’água de um prédio inteiro… só que ainda em um formato esférico, talvez para minimizar a extensão das conexões sintrônicas.
Se isso serve de consolo para o leitor, porém, acho que a Criança Terrível ainda está muito longe - décadas, talvez - de alcançar esse objetivo, já que sequer existe algum protótipo primitivo de prova de conceito para o Gel Sintrônico. De modo que, se é que existe mesmo alguma verdade sobre a mensagem deste sonho sobre um futuro sombrio, ainda temos tempo de evitá-lo.